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terça-feira, 2 de abril de 2013

Prof. Roberto Sarmento fala sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Roberto Sarmento Lima possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (1978), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (1992) e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Alagoas (1998). Atualmente é professor associado 2 da Universidade Federal de Alagoas, onde ensina desde 1978. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: narrativa, discurso, modernidade, poesia e linguagem. É coordenador o grupo de pesquisas Estudos Vieirianos.

Estudos Vieirianos

Descrição: Grupo de pesquisa liderado pelo prof. dr. José Niraldo de Farias, da Universidade Federal de Alagoas, do qual participam também a profª drª Ana Cláudia Aymoré Martins e alunos da graduação e da pós-graduação em letras. Sarmento ingressou no grupo em julho de 2007.
Situação: Em andamento; Natureza: Pesquisa.
Alunos envolvidos: Graduação ( 4) / Mestrado acadêmico ( 2) .
Integrantes: José Niraldo de Farias - Integrante / Ana Cláudia Aymoré Martins - Integrante / Roberto Sarmento Lima - Coordenador.
Financiador(es): Universidade Federal de Alagoas - Outra..

Em entrevista a Leonardo Campos*, o prof. Roberto Sarmento nos fala sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Leia a seguir.

Leonardo Campos – Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é um romance constante nas listas de vestibulares de todo o país. O que você acha disso? Seria o romance o modelo principal dessa visão do Nordeste?

Roberto Sarmento – Creio que a permanência ou a reincidência de um romance como Vidas secas em concursos, exames vestibulares e outras modalidades de seleção se devam a dois fatores, intimamente conexos. Primeiro, a comunicação direta que Graciliano Ramos estabelece com o leitor de qualquer época, com sua linguagem precisa e ao mesmo tempo envolvente, poética, sobre assunto considerado tão atual — senão a seca do Nordeste, ao menos a miséria em que vivem certas parcelas da população em alguns locais do planeta, não só do Brasil. Segundo, o interesse crítico continuamente despertado por essa obra, indo da leitura mais vinculada às posições da esquerda até chegar mesmo a uma visão neoliberalizante do problema. Com isso quero dizer que, utopias à parte, pode-se não ver saída, a não ser do ponto de vista do imaginário (a única saída permitida a tais personagens), para aquela família de retirantes, em uma existência francamente hostil, que recebe, no entanto, a simpatia de um narrador complacente, que, ainda assim, não abdica da visão de um sujeito que nunca teve de passar por aquela situação e por isso resguarda sua superioridade interpretativa.

LC – Graciliano Ramos se diferencia dos demais regionalistas por ser mais conciso, mais direto, aderindo menos às prolixidades de, digamos, José Lins do Rego. Concorda?

RS – Não creio que a diferença de Graciliano Ramos em relação a outros escritores da mesma época se prenda a uma capacidade maior ou menor de estender o tamanho da frase ou de evitar prolixidades, como você coloca. A diferença fundamental que vejo tem implicações com o estilo individual desse autor. Graciliano — mesmo falando do Nordeste e de situações locais e universais de opressão, retratando, como se diz vulgarmente por aí, a vida como ela é — envereda por discussões mais amplas tais como a própria construção estética, o papel da representação na literatura, o poder da metonímia e da metáfora em um texto literário, sua adequação e validade epistêmico-estilística. Isto é, em meio a enunciados claros sobre a vida oprimida e carente de soluções práticas, Graciliano Ramos é, acima de tudo, um pensador. Um pensador sobre estética, uma verdadeira fonte de sinais da compreensão da literatura na contemporaneidade. Isso eu não vejo, perdoem-me se eu estiver errado, nos outros autores do período. Pelo menos, com a intensidade e responsabilidade com que Graciliano pensou esses fatores da fatura estética.

LC – O que o senhor diria do romance Angústia, que representa uma forte carga psicológica e complexidade do autor, por muito tempo foi considerado como obra inferior ao que o escritor havia publicado?

RS – Graciliano Ramos, com charme, dizia que Angústia era um romance cheio de defeitos, de gordura a ser cortada e que não era, por isso tudo, um bom texto. Não sei se ele dizia isso com sinceridade. Finge-se sempre em arte, dentro da obra e fora dela também. Nunca saberemos a verdade sobre tal depoimento. Nem interessa isso ao crítico. Como crítico, pois, digo que Angústia é obra fundamental no conjunto dos textos de Graciliano e no conjunto da literatura brasileira de um modo geral. Um livro em que tempos narrativos se cruzam, mediados pela presença abundante de elementos ligados à água (a água que faz nascer, a água que mata e afoga). Vi tal simbologia e a estudei em um ensaio chamado "Angústia: um romance molhado", publicado em 2006, por ocasião da comemoração dos setenta anos de publicado. A água que falta em Vidas secas sobra em Angústia, romance urbano, cujo foco é uma personalidade torturada, a de Luís da Silva, que se movia ininterruptamente entre a lembrança do poço em que era mergulhado brutalmente pelo pai, e o quintal da casa de Maceió, onde se sentia melhor; entre a chuvinha fina que caía, a lama nas ruas, e a visão recorrente do homem que enchia de água as garrafas e a mulher que lavava as dornas; entre a água da lembrança da infância e a água que corria pelo cano do banheiro em que Marina tomava banho. Enfim, misturavam-se dor e sexo, tortura e desejo. A complexidade da trama fez aparecer tais ambiguidades e tais gorduras, como disse o próprio Graciliano; e, nesse sentido, não vejo por que cortar alguma coisa nesse romance. Não, não, decididamente não é uma obra inferior a nenhuma outra de Graciliano.

LC – O que acha da tradução intersemiótica de Vidas Secas?

RS – Como acontece com qualquer obra que passe por isso — tradução intersemiótica —, há perdas enormes e ganhos também. São realidades sígnicas diferentes demais, embora pareçam ao olhar do cidadão comum a mesma coisa. Mas não são. Como o cinema vai captar momentos da trama do romance que só podem ser sentidas pela palavra? No cinema ou na televisão, fica-se em geral com a fábula, como diz Tomachevski referindo-se à história que se conta, mas não se consegue traduzir, por mais competente que seja o diretor do filme ou da minissérie, a riqueza fundamental do livro, já que eu entendo que uma imagem não vale mil palavras. Cada coisa no seu lugar.

LC – Falando de cinema... você concorda que haja relação coerente entre "O Caminho das Nuvens", de Vicente Amorim, com "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos?

RS – Assisti a esse filme, "O caminho das nuvens", e, sinceramente, não vejo ali, até agora, uma possível evocação de "Vidas secas", nem o romance de Graciliano Ramos nem o filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Trata-se de um filme em que um marido oportunista submete a família a certos vexames para não ter de trabalhar, uma família que foge (estes, sim, fugiram para o Sudeste) e que, ao final, mantém, sem sonhos, o cinismo anterior. Que semelhança pode haver com Vidas secas? Se o título do filme quis sugerir libertação, com a palavra “nuvens” no meio, só posso entender isso como ironia. Note-se que Graciliano jamais poria no título umas “nuvens” dessas, por extremo senso de realidade e de observação meticulosa da realidade que sempre o caracterizaram. Por isso sustento, como afirmei na primeira questão, que a sequidão do título Vidas secas se manteve do começo ao fim da narrativa. Por isso também é que os desejos de Fabiano e Sinha Vitória se expressam, na fala do narrador, por meio do futuro do pretérito, tal o respeito que o autor tinha pela realidade. Nem a ficção consegue subverter tal realidade. Lembro-me agora de Antonio Candido, que, em A personagem de ficção, afirmou que a literatura é mesmo muito tímida em relação à realidade que se toma por foco. Nesta acontecem coisas que Deus duvida. Na literatura, menos.

LC – Poderia comentar em poucas linhas a sua visão sobre Graciliano adaptado (cinema)?

RS – Como disse antes em relação à tradução intersemiótica da literatura pelo cinema, creio que Nelson Pereira dos Santos conseguiu bons resultados, tanto em "Vidas secas" quanto em "Memórias do cárcere". Resultados parciais, mas bons; no entanto, não chegam à altura dos livros transformados em filmes. Só tenho medo de que os alunos do ensino médio pensem que, assistindo a esses filmes, se sintam desobrigados de ler as obras. Assim, a prevalecer essa ideia, o cinema estaria promovendo um desserviço à literatura. E, na condição de filmes, eles têm de ser entendidos como filmes mesmo, dentro de uma avaliação teórico-crítica pertinente, sem deixar que o exame comparativo leve às conclusões por mim assumidas aqui.

LC – Certa vez escutei que, assim como o livro A Hora da estrela, de Clarice Lispector, o romance Vidas Secas seria uma obra que permitiria ligação mais coerente que tantos outros com outras linguagens, como a dança, cinema, pintura, teatro, novelas. O que o senhor diria disso? 

TA – Não saberia dizer isso com tanta certeza, já que nunca fiz tal reflexão. Mas, assim por cima, posso dizer que a literatura está aí, disponível a qualquer tradução intersemiótica. O romance Oliver Twist, de Charles Dickens, já passou por duas adaptações para o cinema, com música e dança. Dickens, se vivo, aprovaria ou acharia legal o que foi feito com seu livro? Quem vai saber? Uma vez publicada, qualquer obra pode ser qualquer coisa. Por isso não vejo em que A hora da estrela ou Vidas secas, nesse sentido de adaptação a outras linguagens e artes, sejam melhores do que, por exemplo, Mar morto, de Jorge Amado, que, por artes do demônio, também pode virar, digamos, um musical. Tudo é possível. Depois então é que poderemos avaliar se deu certo tal aventura.

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